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segunda-feira, 3 de março de 2008

Alentejo

Perdi a conta às vezes que olhei para o caminho. Que olhei com olhos de ver. Sei de cor todas as curvas, o nome das aldeias que atravessamos, a cor das casas de que gosto até chegar ao destino.
Guardei os cheiros dos campos de Março. Sei que daqui a dois meses os lírios vão nascer junto às florezinhas amarelas. Que é tempo de as cegonhas se reunirem nos ninhos e ali entardecerem juntas.

Sei que os dias já estão maiores e que é época de fartura de pesca nas barragens que espreitam a estrada. Que achegã é bom se for grelhado e acompanhado com molho de manteiga.

Apesar de já há muito aqui não vir, calculo (e não me engano) que o declive da estrada, depois daquela curva, ainda lá deve estar. Que mais à frente o alcatrão encolhe para "voar" por cima de uma ribeira, em forma de ponte, onde, há muitos anos atrás, era bom nadar nas tardes de Verão.

Conheço cada quilómetro de cor. E raramente me lembro da beleza que todos me oferecem. Os 120 que hoje paracem tão curtos, antigamente tão longos. Mas está tudo na mesma. Quem mudou fui eu.

Hoje não há a pressa de chegar. O coração não está em alvoroço com o pensamento do beijo prometido para aquele fim de semana, às 9 da noite, junto ao coreto do jardim. Ainda há amigos por visitar mas poucas afinidades. Apenas as memórias queridas de uma infância traquina, passada a roubar melões e laranjas ou a bater às portas das velhas beatas e desatar a correr rua abaixo.

Sem a impaciência do passado ("Ó pai, não dá para ir mais depressa?") regresso ao fim de alguns anos. De menina a mulher. Casada. Com uma filha. Mais gordita, dizem, mas com os mesmos olhos! "Vê-se mesmo que és filha de tê pai e neta de tê avô! E a menina tem os nossos traços!", reclamam os tios idosos. Reclamam as origens da família. "Genes fortes! É o que é!".

Chego e não fujo para junto dos "meus" de outrora. Porque o tempo se encarregou de nos afastar. Porque quem aqui nasceu partiu para as grandes cidades. Dou por mim sentada à porta da casa de sempre. Sol morno na pele. Reparo que não há barulho. Não se ouve nada. Nem carros, nem gente, nem nada. Gosto do pensamento mas a verdade é que o ruído faz-me falta. Começo a ficar incomodada.

A pequenina corre estada fora. Sigo-a com o olhar mas não me mexo. Sei que não vai passar ninguém. E se acontecer, sei que terei muito tempo porque o som chegará muito antes que o carro. Olho para ela, eufórica, e sorrio. Hoje o dia é dela. Hoje a vila é dela. Como já foi minha.

Sei que acabo de oferecer mais uma raiz à minha filha. Este lugar passou a ser dela também. E terá muitos anos para aqui vir e viver o que eu vivi. Um dia será ela a pedir-me que acelere. Que desaparecerá na festa do Santo padroeiro. Que marcará o primeiro beijo no coreto do jardim. Será? Não sei. Quero pensar que sim...

Entretanto, aninho-me em mim, ao sol do entardecer, e deixo-me ficar enleada em lembranças, com as gargalhadas da pequenina que herdou os genes alentejanos, que veio quebrar o silêncio da rua com o som mais bonito do mundo. :)

5 comentários:

Fractal SMOG disse...

Gosto de tanto de regressos, Mammy.

Especialmente aqueles em que regressamos a nós mesmas... Aquecem-nos a alma!! Mesmo em dias em que não há sol!! :)

A Mãe disse...

Fractal Smog!
Eu também gosto de regressos. E cada vez mais me convenço que passamos parte da vida a deixar pedacinhos de nós em lugares para, um dia, regressarmos e nos reencontrarmos com quem fomos. Ou somos :)

Fractal SMOG disse...

Esses pedacinhos fazem parte de nós. Nós é que nem sempre nos lembramos deles...

Um beijinho, Mammy!!

Paula disse...

Agora fizeste-me lembrar os bons tempos que passava, cada vez que ía passar férias a casa dos meus tios, em Braga!
Bons tempos que infelizmente já passaram, porque hoje cada um tem os seus filhos, os seus maridos/mulheres, as suas casas... E aquele grupo de primos e primas que brincava na estrada e ía explorar vales e serras, hoje tem outras preocupações.
Creio que vamos passando por fases na nossa vida e o melhor que temos a fazer, é viver cada uma delas, o mais intensamente possível!
Bjs!

Rusty disse...

O que eu acho injusto é tu não escreveres um dia um livro, porque este mini (grande texto) deu para viajar nos meus tempos e soube tão bem:)
Parabéns

Rusty:)